domingo, 18 de setembro de 2016

'Tu é surda? Como entende o que eu falo?"

Pergunta rotina na minha vida:


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"Se tu depende de leitura labial, como que às vezes fica na sala de aula sem olhar pro professor, ou entende algumas coisas que a gente fala enquanto olha pro celular?" 
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Elementar, meu caro Watson.


É a mesma arte a que Sherlock Holmes era tão dedicado, a dedução


Quem tem perda auditiva desenvolve naturalmente a capacidade de relacionar aquele pouco que ouve com o que provavelmente foi dito. Durante a infância, ao ouvir uma frase em que só entendia algumas sílabas, eu pedia para repetir. Quando entendia o que era dito a mente então fazia a conexão: 

"Ah, aquelas poucas sílabas/sons que ouvi significam 'tal' frase."
 E isso fica gravado na memória.

Assim, na próxima vez já é mais fácil deduzir o que dizem. Esse processo levou uma vida para ser aprendido e ao parar para analisar, é bem instigante, porque é ouvir de uma maneira bem diferente, mas ao mesmo tempo, muito natural para mim. Já comentei um pouco sobre isso nesse texto aqui.

Há alguns momentos em que chego a pensar que não tenho mais a perda auditiva porque com esforço consigo entender o que dizem. Mas então eu paro para prestar atenção só nos sons, sem a leitura labial e observo que é tudo dedução - faltam muuuitos pedacinhos da fala, o cérebro que preenche pela memória auditiva. É como se as frases fossem somente murmúrios, sem distinção entre as sílabas.

Lembrando, minha perda é moderada, bilateral e progressiva. Meus primeiros aparelhos auditivos foram adquiridos somente em 2016, mesmo tendo a perda desde a infância. 

Então como é essa vida ouvindo pouco, sem saber libras, se virando na leitura labial?

Em uma conversa é como se a frase aparecesse projetada no meu campo de visão, com lacunas, e então uma lista enorme surge embaixo de cada palavra com as possibilidades, e rapidamente cada uma é testada até encontrar a que faz mais sentido na frase.

No dia a dia, me sinto mais ou menos assim: 
~"Atenção neurônios, ao ver o "Bom dia" a gente já capta a leitura labial do 'b' e  'd' dessa pessoa, os 4 primeiros segundos são fundamentais pra descobrir como é a fala dela"~

~"Mas o que é aquela palavra ali? E a próxima? Preciso ainda de alguns segundos pra aprender a leitura labial nessa pessoa, só mais um segundinhos e já vamos entender aquelas palavras que ficaram pra trás. Buscar na lista, buscar na lista! Essa palavra não faz sentido, deve ser outra, ah, essa também não, deve ser outra, continuar procurando na lista.."~

~"Oh céus, aquela frase lá já era, atenção para a próxima, neurônios...Eita, já conseguimos captar bem a leitura labial dessa pessoa, agora só manter o ritmo...Qual é essa palavra? O que ele disse? Aquela letra, é v, p, t ou d? E a próxima palavra?"~
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Se é alguém com quem já conversei por mais de 15 minutos:
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~ "Olha só, queridos neurônios...Vocês lembram que essa pessoa sempre falava daquele jeito específico, né? Então hoje ela está mentindo, que bonito...Continue, vou fingir que acredito...E essa letra falada de um jeito diferente, é nervosismo será? Hmm..Você não demorava tanto nessa palavra, deve ser mentira ou dúvida..."~




Isso em frações de segundos: deduzir, conectar à memória, leitura labial, leitura corporal e pensar no que comer quando chegar em casa hahaha



Esse esforço constante causa um cansaço mental enorme, enquanto o corpo não fica tão cansado. Só que pra piorar tem o tédio: raciocinando num ritmo tão acelerado para entender o mundo, não entender alguma coisa é entendiante -  e  uma frustração, como um tapa na cara e um "Não adianta, Dani, você é uma pessoa com deficiência auditiva, esqueceu?"
Ficar na mesa fazendo um lanche com a família e a televisão ligada é uma situação que chega a irritar de tédio, sério! É barulho e mais barulho que não faz sentido algum, só fico pensando "Desliga essa m#@$!, quem precisa de TV?". Cinema pra ver filme dublado, então? Tentei esse mês e quase dormi! Tédio, tédio, tédio, parece que todos falam outro idioma e fico ali sem ter o que fazer. Em conversas em grupo, eu já deixo passar muita coisa, todos riem de alguma piada e eu nem me dou mais ao trabalho de perguntar o que falaram, só dou risada também e penso "deixa pra lá".
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"Ahh e a música, como que tu ouve? Já te vi com fone de ouvido! Hein?"
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Também por dedução, pois a mente sempre preenche as lacunas. Isso é possível porque na minha playlist quase não tenho músicas novas, são músicas que já ouvia desde a infância com meu pai quando estava no carro, onde é alto o suficiente e isso me permitiu conhecer os sons de cada música. (É tudo Beatles, Kim Carnes, Roxette, Cyndi Lauper, Enya, U2Bruce Springsteen, Elvis...hahaha)
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 (A lista na verdade é pequena, pois cada música precisa ter alguma lembrança conectada. Não consigo sair procurando músicas aleatoriamente no youtube, alguém precisa recomendar ou ser algo que lembre algum momento. ☺) 
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Eu tenho certeza que é tudo preenchido pela memória auditiva pelo seguinte teste: eu coloco o celular em cima da cômoda, tocando alguma música que já sei qual é, e fico pelo quarto 'ouvindo', e sei bem em que parte da música que está. Assim que acaba a música e começa a próxima, que não sei qual é, só escuto uns ruídos leves, uma batida beeem fraquinha, uns sons impossíveis de entender. (Isso SE for uma música alta, senão eu acho que o celular parou de funcionar) Não consigo descobrir qual a música. Mas se eu aproximo o celular no ouvido, em segundos o cérebro entende, e então posso afastar novamente que vou continuar 'ouvindo' e entendendo até o final - mesmo sabendo que é o cérebro preenchendo. Mas mudou a música de novo? Já não faço ideia do que está tocando. Se for músicas em português, eu só entendo se já conheço a letra.

E é por isso tudo que: Não ouvir é uma visão de vida completamente diferente, um jeitinho de lidar com cada situação que só nós e quem vive algo parecido que compreende. E aprender a ouvir é como descobrir um mundo novo, outra realidade, outra vida, situações, medos, pensamentos, quase que viver uma realidade paralela - ou descobrir  um mundo paralelo, que sempre esteve ali mas só eu não sabia, ou melhor, não ouvia. 

Se na sua família tem alguém com deficiência auditiva, pesquise sobre, e principalmente, converse com a pessoa perguntando o que precisa melhorar, o que fazer e o que não fazer. É difícil lembrar de tudo no dia a dia, mas com o tempo e diálogo frequente, você vai evitar falar estando em outro cômodo, vai entender que se ela estiver ouvindo música não vai ouvir qualquer outro som externo, vai lembrar de falar devagar dentro do carro, e se possível, virar de frente para facilitar a leitura labial, além de muitos outros detalhes. 

Acredite, as mínimas atitudes fazem muita diferença. 

(Prometo um dia filmar eu e meu pai cantando no carro - eu morro de rir com as performances dele haha E a maioria das minhas músicas tem essa lembrança: meu pai e eu cantando/incorporando  músicas dos anos 50 aos 80 enquanto ele dirige)


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