segunda-feira, 27 de março de 2017

Por que uma deficiência invisível te incomoda?

Não são poucas as vezes em que somos percorridos de cima a baixo por olhares ávidos, pesquisadores e que transbordam curiosidade, em busca da nossa "falha". Porque parece já intrínseco aos humanos procurar pelo 'erro', em vez de apreciar os 'acertos', não? 

É incrível como querem descobrir qual a nossa deficiência. Querem descobrir se a pessoa que está na fila preferencial tem algum membro amputado, e por isso, olham, percorrem os nossos corpos como se eles fossem um objeto de estudo em laboratório. E são olhares são tão cheios de julgamento que me fazem pensar "O que será que significa deficiência pra essas pessoas? Parece ser algo horrível, pelos olhares".

As pessoas pensam que TEM QUE SER UMA DEFORMIDADE VISÍVEL. Sabe por quê?

Porque pra maioria, uma deficiência é algo "vergonhoso, feio, que dá pena."
Então, pra elas,  precisa ser visível. 
Não é deficiência, se não causa vergonha.
Como se uma pessoa com deficiência fosse uma 
pobre coitada de quem todo mundo tem pena pela aparência.


Descrição: ator Robert Downey, de terno e gravata, com os braços cruzados, olhos revirados e boca aberta.

Mas você sabe o conceito correto?

Lei 13.146/2015:

 Art. 2o  "Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas."


E a definição de barreira, também conforme a lei: 


"barreiras: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança, entre outros(...)"


Encontrou onde diz que deficiência é algo feio? Ou que é alguma deformidade que necessariamente chama a atenção? Que é visível? Então...



Mas e a fila preferencial, é pra todo tipo de deficiência? 


Sim! Fila preferencial não significa "fila rápida". Claro que, por bom senso, pessoas com mobilidade reduzida têm prioridade, e isso deveria ser para todas as filas. Mas o atendimento preferencial é para oferecer um atendimento em condição de igualdadeevitar constrangimentos. É onde tem um atendente (teoricamente) treinado a lidar com um cego, um idoso, surdo ou cadeirante. 

Ahh, se todos tivessem paciência para entender o que é "Fale devagar, por favor, não escuto", eu nem iria em caixa preferencial, mas sim em qualquer um. Só que já cansei de passar vergonha e stress com atendente que ignorava o meu pedido de repetir o que disse e achava que eu estava desatenta. Pior, quando repetia, repetia com aquela cara de "Presta atenção na próxima vez", de um jeito nervoso e olhos revirados.

Claro que estou sempre com alguma carteirinha de comprovação da deficiência comigo. Geralmente, mostro no balcão de atendimento, dizendo "Esse é o comprovante de pessoa com deficiência, por via das dúvidas", mas recebo um "Nooossa, nem parece!" E é aí que tá. Pros outros, "tem que aparecer", mas não, não é assim!

Então, em todo lugar em que vejo que posso ter dificuldades no atendimento comum, eu faço valer meu direito e vou no atendimento preferencial. Em aviões é um exemplo. Quando sentei lá no meio de outros passageiros, e vieram servir o lanche, eu não conseguia ouvir as opções. Pedi pra comissária repetir várias vezes, mas com todos os barulhos junto, conversas, eu não entendia. E recebi olhares de passageiros tipo "Aff...Ela tá atrasando todo o serviço, perguntando várias vezes...". Escolhendo o assento preferencial, eu digo aos comissários de bordo que preciso de uma fala mais clara, devagar, e tudo fica perfeito. 

Já me disseram que a minha deficiência é uma mentira, que eu só escuto o que quero.

Que é igual uma rinite. (Essa eu ri, e depois pensei: não posso discordar. Rinite é algo que incomoda muito quem tem, mas incomoda bem pouco aos outros, então, até que faz sentido)

Mas sabe de uma coisa? Só a gente, que tem deficiência auditiva, que sabe o quanto isso afeta a vida, e claro que afeta, senão não seria deficiência. É a panela que transborda no fogão e a gente não escuta. Algum parente querendo perguntar algo gritando de fora do banheiro quando a gente tá no banho. (Não adianta, vai ter que esperar). É o namorado(a) que não pode ficar abraçado no escurinho falando coisas na orelha. (Quer dizer, pode, ué, mas vai falar com as paredes, hehehe). É aquele filme em família que só você não pode ver porque não tem legendas. É aquela conversa em festas que você nunca participa porque é um esforço enorme entender algo. É o celular que toca e os outros tem que avisar. É o terror da adaptação aos aparelhos auditivos, onde até abrir um zíper vira tortura. 

Nós sabemos como é. E essa nossa união é muito importante, por isso eu adoro ver os grupos do Facebook onde conversamos sobre tudo de surdez, tiramos dúvidas, desabafamos e rimos. E é essa união que devemos ter para gritar ao mundo: não temos vergonha de nós mesmos. E se o fato de nossa deficiência ser (quase) invisível te incomoda, problema teu, preconceito teu, querido. 


Descrição da imagem: um meme famoso, de um cara de óculos escuros, com uma mão levantada, que acabou de jogar uma pitada de sal no ar, com um jeito debochado, a mão bem delicada.


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