sexta-feira, 22 de abril de 2016

O início de tudo

Nada como começar uma história pelo começo. Hoje quero contar pra vocês como descobri sobre minha perda auditiva.
Antes que alguém pense “Mas qual a necessidade disso?” Já digo: É importante sim falar sobre surdez. Muitos acham a dificuldade de quem não escuta bem é falar no telefone, e como hoje temos mensagem, então está tudo resolvido; ou pensam que aparelhos auditivos devolvem a audição normal. Há quem pense que todo surdo é mudo e se comunica em Libras. Lamentável, com tanta informação de fácil acesso.
A surdez é tratada como: algo que você até pode ter, mas que deveria “esconder”, porque todos, supostamente, sabem o que é, acham que falar sobre isso seria um lamento de alguma doença, se fazer de “coitadinho”. Chega, né pessoas?
~Deixo aqui uma foto aleatória da minha gata, só pro texto ficar menos enjoativo. ~


Bom, como Sherlock Holmes gostaria, vamos começar a história pelo começo. Um relato sobre situações que passei na infância e adolescência, o que pode até ajudar outras pessoas a identificarem essa condição.


Que eu me lembre, desde criança, não ouvia muito bem. Quando minha mãe me chamava lá do quintal eu raramente ouvia. E isso era entendido como falta de atenção, e muitas vezes, levava bronca porque ela me chamava pra ir ajudar estender as roupas no varal, ou algum outro serviço da casa e achava que eu não ia por preguiça, enquanto na verdade eu não fazia nem ideia que tinha alguém me chamando. Muitas vezes tinha gente batendo palma na frente de casa, telefone tocando, e se minha mãe estava ocupada, o que ela fazia? Me chamava! E eu, nada, só observando mosca voar. Quando eu ouvia que ela estava me chamando, tinha que ir até onde ela estava, pra poder entender o que ela dizia, e nesse tempo, a pessoa já foi embora e o telefone já parou de tocar.


Na escola, ficava sempre sentava virada bem pra frente,  e fazia leitura labial nos professores. O lado bom é que essa atenção toda em ler os lábios e tentar entender o que o professor falava de costas para a turma me fazia aprender muito bem o conteúdo, o que sempre me gerou ótimas notas. (Na humildade, gente, eu fui boa aluna, não posso negar) E durante toda a infância, desenvolvi a capacidade de leitura labial e corporal também, o que hoje considero meu "superpoder" hahaha (vi no Crônicas da Surdez essa nomeação).


Lembro bem que as "aulas de terror" eram as de ditado, em que a professora ficava andando pelo fundo da sala, e queria todos virados pra frente, não deixava nem fazer leitura labial (infelizmente era a forma que ela tinha de fazer todos ficarem quietos e atentos, e na época ninguém imaginava que eu não ouvia).  


Todos sabemos que não existe lugar mais propício à piadinhas e deboches do que escola, afinal, são quase 40 crianças dentro do mesmo ambiente, todos os dias. Era comum colegas me chamarem, chamarem, e até berrarem, e eu lá no meu cantinho, não fazia nem ideia, até que alguém me cutucasse. Me acostumei com a frase que gritavam: “Chama mais alto que ela é surda.” Quando eu me virava e olhava pro rosto deles, entendia perfeitamente o que era dito, mesmo se falassem baixo. Por nunca saber o que a turma conversava, qualquer risada já achava que estavam rindo de mim, e isso é algo comum no dia a dia de quem ouve pouco.


Todos os anos durante as olimpíadas havia gritos de guerra, e todas aquelas músicas de torcida que toda turma faz. Eu lá no meio, amigos gritando, e só consegui entender metade do que era dito. Quando me convidavam pra torcer junto, só podia gritar as palavras que tinha entendido, e ficar quieta nas outras. A vergonha de parar e perguntar o que eles cantavam era grande, afinal, eles berravam, logo, eu ficava imaginando a reação deles se eu dissesse que não tava entendendo o que era dito.


Outra situação que me prejudicou muito nos anos de estudos e prejudica até hoje, é quando faço prova. Geralmente os professores ficam andando pela sala, ou ao fundo, e quando eles falam algo sobre a prova, até eu virar a cabeça, ver onde eles estão pra fazer leitura labial, eles já terminaram de falar. Algum colega pergunta algo sobre a prova, o professor responde, e acaba dando uma dica sobre a resposta, todos entendem, menos eu. Já perdi nota porque o professor falou sobre um erro na questão, acabei não corrigindo e fazendo a prova com valores errados porque não escutei, e pensei que o professor tava só respondendo algum aluno.
Recreio na escola, tinha que ficar no pátio. Se ficasse na biblioteca, como eu queria, era só me concentrar num livro, que o sinal batia e eu lá ficava.


Aos poucos, minha família reclamava que eu aumentava bastante o volume da televisão, notei que não gostava de ouvir rádio nem de assistir desenhos animados, porque mal entendia o que era dito. Acabava jogando vídeo game ♥, que era melhor do que ficar vendo um algo sem entender nada. Mesmo aumentando muito, mas muito, o volume da tv, havia muitas palavras que eu não entendia. Telefone então, com muita dificuldade.


Quando tinha uns 10 anos, tive consulta com uma médica otorrino pelo SUS, mas ela disse que o que eu tinha provavelmente era só falta de atenção (absurdo, considerando o bom desempenho da escola)  e deu a requisição pra um exame, que espero até hoje.


Até que tive que parar, acordar pra realidade, abandonar o modo “automático” de viver as dificuldades que vinha vivendo e começar a criar coragem pra descobrir o que tinha de errado comigo. A sensação é igual quando sai a nota daquela prova final: a gente quer  saber mas tem medo do resultado. Ano passado consegui plano de saúde e fiz os exames, onde foi constatada a perda moderada, bilateral, e progressiva. CID: 90.3. Pela opinião do médico, é provável que eu chegue aos 40 anos já com surdez profunda. E pronto, é isso.

Uma verdade:  A  ficha  demora  a cair.


Mas cai. E depois disso bate o desespero: QUERO ouvir! É importante para minha segurança e qualidade de vida, já que não aprendi Libras, infelizmente.
(Se algum dia eu já ouvi como a maioria das pessoas ouve, foi lá nos primeiros anos de vida, o que me permitiu desenvolver a fala normalmente. )

Que esse  blog seja pra construir conhecimento e desconstruir pré-conceitos, e também aqui vou registrar a minha jornada nessa vida tão silenciosa (por enquanto).




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